sábado, dezembro 31, 2011

A passagem de testemunho


2012: Então meu velho, que mensagem quer transmitir aqui ao seu herdeiro?
2011: Olha rapaz, fui considerado pelo meu pai, o 2010, um ano difícil, mas pelo que vejo tu vais suplantar-nos de longe!
2012: Ora, ora… Há quem diga que vou dar cabo da crise!
2011: Típica da juventude essa arrogância, ou será da tua mãe canadiana?
2012: Deixemo-nos de conversa. Afinal quer deixar a sua mensagem ou não?
2011: Vamos lá então. Gostava que durante o teu ano fosse implantada a Monarquia.
2012: Isso já é pedir muito, não acha?
2011: Então pelo menos que os monárquicos se unam e consigam passar a mensagem…
2012: Já me parece mais razoável, meu velho. Deve ser a única coisa em que concordo consigo…
2011: Espera, há mais! Ou pensas que só há uma tarefa a cumprir num ano? Não és nenhum político…
2012: Está bem, está bem! Diga lá de sua justiça.
2011: Tens de lutar para que a voz do povo seja finalmente ouvida.
2012: Está maluco? Então não existe uma coisa chamada Assembleia da República, onde estão sentados uma data de senhoras e senhores eleitos pelo povo?
2011: Pois sim, mas em primeiro lugar, muitos nem sequer votaram, votaram em branco ou nulo. Em segundo lugar, há quem tenha votado, não por convicção mas por voto útil ou voto de raiva. Assim, a dita Assembleia, não representa verdadeiramente o povo.
2012: Então mas que quer que eu faça? Ai, ai, ai… Já me está a dar trabalho demais…
2011: Queria que tu abrisses os olhos às gentes e mostrasses que há outros caminhos, outras formas de representação e de participação na política. Queria que transformasses ovelhas em homens. Já agora, gostava que conseguisses que alguns dos valores mais importantes numa sociedade voltassem a ter dignidade, como a honra e a palavra, por exemplo…
2012: O pai é um sonhador. Vive noutro ano, mesmo.
2011: Afinal concordas, ou não? Queres deixar a tua marca na História dos anos, ou não?
2012: Se isso der direito ao dinheiro do prémio Nobel, até quero…
2011: Tudo o que te ensinei não serviu de nada? Não viste o que se passou com as PPPs e o Parque Escolar, por exemplo? E as Novas Oportunidades? Nem falo de mais nada… Não deixes que te façam o que fizeram aos meus trisavós, bisavós, avós e pais. Tens de mostrar que vais mudar tudo.
2012: Não posso prometer, mas posso tentar. Preciso é que este povo me ajude. Adeus pai.
2011: Adeus filho. Não esmoreças e não te esqueças do passado. Sem ele não há futuro e o teu filho não nascerá.

segunda-feira, dezembro 26, 2011

Memórias a várias mãos do Natal dos Raposo na R. de S. Ciro


(texto em contínua evolução pelas mãos que o ditam, como exercício de memória)

Rua de S. Ciro. Casa da avó para nós, porque não chegámos a conhecer o avô.
Jantar do dia 25, com toda a família, o que queria dizer 6 filhos, respectivos maridos ou mulheres e 16 netos. A confusão do costume, correrias, gritos, a alegria do reencontro, mesmo que nos encontrássemos quase todos os sábados no mesmo sítio.
Uns dias antes chegava o perú do Alentejo, de comboio, confraternizava alegremente com as galinhas antes de ser embebedado para o dia de Natal, em que trôpego, tentava circundar os buxos.
Vinham “milhões” de perús em Novembro, eram engordados na R de S Ciro e vendidos para as embaixadas e pessoas que iam comprar à porta (Zeca).
No dia 25, íamos chegando, e corríamos directos para a salinha com porta para o jardim, onde a avó passava os dias, sentada à camilha, a fazer paciências com cartas minúsculas e já muito gastas.
Aos sábados entrávamos pelo portão, depois de tocar um sino. No Natal tínhamos direito à porta principal, ao lado, e havia uma sala que só era usada nessa altura (Catarina).
Depois do beijo respeitoso à avó e tios, começava a confraternização, os jogos… Jogar às escondidas naquela casa levava a muitas desistências, porque havia sempre vários que nunca eram descobertos.
A avó montava um presépio grande e já não sei em que altura chamava todos, acendia uma vela e, de joelhos, rezávamos e cantávamos ao Menino Jesus.
Das cantigas de Natal que se cantavam, ficou-me para sempre gravada na memória a estridente entoação que o Tio Quito dava á "noiiiiite do carameeeeelo !!!!" do "Entrai pastores, entrai". Todos os anos no Natal, quando oiço esta cantiga tento imita-lo. Mas nunca me sai bem... (Joana)
Quando eram pequenos os tios apanhavam no jardim o musgo para pôr no presépio. A avó Tim, às escondidas, punha dinheiro em notas debaixo do musgo com um nome de um pobre da rua. Depois dizia que aquele musgo já estava seco, as crianças tiravam-no, viam as notas com os nomes e iam dar as notas a essas pessoas, como se fosse um presente do presépio (Tia Bió).
A Ana Rita era posta em cima de uma mesa a imitar a Madre Rosa das Escravas (Catarina).
O jantar era numa mesa gigantesca, e aquele perú recheado não se compara com mais nada que tenhamos comido no resto das nossas vidas.
Nem me lembro bem dos presentes. Havia é claro, mas a lembrança de estar juntos é que fica.

quinta-feira, dezembro 01, 2011

Primeiro de Dezembro (pela mãe - 2003)

Por Teresa Maria Martins de Carvalho

Já não se usa. A “pátria” já não enche os corações. Na organização das nações como nações, o factor económico predomina. Nações viáveis são aquelas cujas estruturas terão capacidade para aguentar-se em pé, contra si próprias e as forças de destruição, que às vezes sobem à tona, e também contra aquilo ou aqueles que de fora se servem do país como caixote de lixo.

Não se insistiu muito no caso de as autoridades francesas e espanholas terem combinado entre si enxotar o Prestige, a escorrer nafta, para as costas portuguesas. O alerta “nacional” foi rápido e evitou o pior para Portugal.

Somos Europa, etc. e tal. Só às vezes... A mesma moeda nas vénias aos grandes que violam pactos cujas leis deveriam ser iguais para todos. Só quem recebeu a Europa Unida, de braços abertos como quem recebe a paz universal, lisa e limpa, se surpreenderá com estas infidelidades nacionais, ou melhor, a arrogância dos grandes, neste caso a França e a Alemanha... Sem elas não haveria Europa? Então aguentem para nós nos aguentarmos. O peso da economia dos dois países é determinante para a saúde económica da União Europeia. É “economicamente” conveniente. Quem faz as contas é que sabe.

Esta retoma útil da bandeira nacional tanto ajuda nas dificuldades dos grandes como na escapatória dos pequenos. Aquilo a que se chama pátria, volta a ter valor, não só para vitórias futebolísticas mas para exorcizar ameaças ou então para servir de encosto a uma posição difícil dos grandes, com piscar de olhos conivente.

Com o grande Mestre que foi Henrique Ruas, há largos anos aprendi, à mesa do PPM, uma frase de Santo Agostinho que me tem acompanhado desde então, como alicerce inabalável em que assentar o meu discurso político.

Populus est coetus multitudinis rationales, rerum quas diligit concordi communione sociatus (De Civit. Dei, XIX, 24)

(Povo é a porção da multidão racional associada pela comunhão concorde nas coisas que ama)

A pátria, o povo que nela encarnou, seria assim da ordo amoris, afirmação que irá concerteza incomodar os racionalistas de serviço. Até porque a data, exaltante e comovente, do 1º de Dezembro, que gera gritos incómodos, um pouco démodés, não se coaduna com a visão económica do novo viver europeu. Até os estudiosos reclamam que, no século XVII, só quando o governo espanhol apertou a bolsa aos contribuintes portugueses, estes se lembraram de que não eram espanhóis e que bem podiam ter outro rei... A Guerra da Independência esgotou depois o país mas o povo reconheceu que aquilo de que gostava (e nisso incluía o lugar real para o Duque de Bragança) não eram só “valores espanhóis”.

As forças do lugar, como diria o meu amigo Álvaro Dentinho, são muito mais determinantes para a identidade do povo, que o habita, do que se pode imaginar. Com litoral e oeste, somos filhos do poente, fácil cais de embarque para a saída, estamos não estamos, até inventámos a saudade para podermos sair sem remorso.

Dizem as más línguas que se Filipe II tivesse feito de Lisboa a capital das Espanhas, nunca teria havido restauração de Portugal, porque a força dos lugares, assim estimados, teria dado a Espanha essa humidade da costa portuguesa que, como disse o pintor Dali, se sente na pintura de Velásquez, cuja mãe como se sabe era do Porto. Pois. A Espanha (Castela, s. f. f.) tem uma enorme força centrípeta e que, até agora, com a ajuda da Monarquia, tem mantido unidas as autonomias, mas que colide sempre com a força centrífuga, não menos importante, que é Portugal. Assim estaremos equilibrados.

Não faz sentido festejar o 1º de Dezembro? Outra invasão, insidiosa, talvez mais potente do que o exército do Duque de Alba, vem acontecendo, com o aval de todos, agora quando nem sequer já há pesetas...

Comprar produtos espanhóis, descontar em bancos espanhóis, ir ao médico ou ao dentista espanhóis... Se forem bons, tanto melhor. Ser espanhol não é por si uma ameaça apesar de andarmos com a Espanha às costas... Estamos habituados às misturas que aprendemos em África, na Ásia e no Brasil. Se, na maré enchente da União Europeia, houver sobrevivência de Portugal, suficiente para se reconhecer a si próprio, será sempre indicando essas lonjuras, pátria de pátrias...

É o poder económico que vai "comprando", no verdadeiro sentido da palavra, o solo português, como fizeram os judeus na Palestina. Os espanhóis compram terrenos no Alentejo, fábricas, lojas, bancos, consultórios. Já nem é preciso gritar para recuperar Olivença. Ela virá ter connosco através desta ocupação do território... Há portugueses, sobretudo na raia, que não se importavam de ser espanhóis. Ganhavam mais. Viviam melhor. É sempre o factor económico.

Festejar o 1º de Dezembro? Quem não se lembra do seu passado não pode viver convictamente o presente. Comer bolachas espanholas não baralha necessariamente o ser e o estar, essa distinção da língua que nos guarda de confusões, patrióticas ou outras. 

in http://jacarandas.blogspot.com/2003_12_01_archive.html

Restauração



Significativo o facto de este ser o meu centésimo post.

domingo, novembro 27, 2011

De Ernst Jünger

http://cdn.counter-currents.com/wp-content/
uploads/2010/07/ernst-junger-with-bird.jpg
Do pouco que ainda li do Ernst Jünger retiro, por exemplo, isto:

...É um bom presságio para nós o facto de a nossa memória orientar a história segundo estas estrelas de primeira grandeza. Na verdade nesse ponto igualamos os astrónomos, sendo o seu domínio o visível; apenas uma grande luz pode cruzar os espaços infinitos, apenas uma consciência intensa atravessa os bancos de bruma do tempo.
...Mas continua a ser surpreendente como, apesar dos séculos, modelos e exemplos mantiveram o seu brilho se pensarmos na força com que o brutal e o informe ressurgem sem cessar. Neste sentido, A Odisseia é a grande epopeia da razão lúcida, a canção do espírito humano, cujo caminho através de um mundo cheio de horrores elementares e de monstros cruéis, apesar da resistência dos deuses, conduz a um fim.

in O Coração Aventuroso "Das abenteuerliche Herz. Figuren und Capriccios."

terça-feira, novembro 22, 2011

Carta à minha operadora


22 de Novembro de 2011

Exmo. Sr. ou Sra.:

O meu nº de cliente é ---------, a morada ---------------------------------------, e os meus contactos principais são: ---------------------------.

Tinha intenção de solicitar a rescisão do contrato que tenho com a ---, cujo prazo de fidelização terminou em 28/10/11, uma vez que a data de “estado” indica 28/10/10, conforme prints que anexo.

Segundo fui informada telefonicamente, afinal o período de fidelização terminaria em Fevereiro de 2011, ao que me indicam por ter recebido um telefonema nesse mês a informar gentilmente (uma oferta unilateral que aqui a tola achou que era bondade vossa) que a Internet passaria de 50 para 60 Mb.

“Esqueceram-se” de informar que a contagem do período de fidelização recomeçaria.

Ainda há quem diga mal dos ciganos. E afinal não são só os políticos.

Faço notar que essa tal data de Fevereiro não consta em lado nenhum a não ser no vosso sistema interno. Viva a transparência!

Por isso, ao invés de rescindir vou ter de ficar até Fevereiro, porque pelas minhas contas teria de pagar 930 €, verba de que não disponho (se não for este o valor, agradeço ser informada, como vosso último gesto galante em tentativa desesperada de provar a honestidade que não possuem).

E não, embora esteja a pagar o balúrdio de 62.40 € mensais pelo pacote, não quero renegociar, porque senão o período de fidelização iria aumentar, seja para 12 ou para 24 meses. Aliás apenas me ofereceram a hipótese de um pacote uns 10 euros mais barato.

O que quero agora, é desligar-me de vocês PARA SEMPRE.

Solicito assim que me seja enviada, no prazo de uma semana, a prova de que efectivamente acedi ao proposto e que fui informada de que o período de fidelização recomeçaria, bem como da data exacta em que termina esse tal alegado prazo de fidelização.

Um recado para a Direcção Comercial. Se não fosse esta circunstância, podia ser que até um dia voltasse a fazer contrato convosco. Assim garantiram que nunca mais.

Se tivessem consciência, poderia pensar que não dormiriam bem. Já percebi que não a têm. É pena.
Com políticas destas há-de chegar o dia em que não há clientes.

Farei a divulgação que entender da situação e as tolas como eu que ainda acreditam na honestidade empresarial vão deixar de ser tolas. Pelo menos na Universidade, no meu curso de Gestão, não se ensinava a ser desonesto.

Se as outras operadoras fizerem o mesmo, chegará um dia que não terei nenhum serviço. Mas ainda ninguém morreu por não ter televisão, telefone ou Internet.

De fome sim.

Com os melhores cumprimentos,

Leonor 

PS Como proposta em nome da transparência sugiro que a data do fim do período de fidelização passe a estar visível no sítio pessoal da Internet.


Quando me apetecer ponho o nome real da operadora.

quarta-feira, novembro 16, 2011

Do mestre Vermeer

 A maid asleep


Desta vez sem a costumeira janela nem o chão quadriculado, mas como outros do Vermeer, deixando entrever num jogo de luz e sombras o que está para lá do delicioso tema central. 


A porta entreaberta é o chamariz irresistível que guia o nosso olhar curioso a espreitar.


(observações de uma leiga assumida que gosta desta criada adormecida)

sexta-feira, novembro 04, 2011

Da mãe

A CASA LUSITANA

Por Teresa Martins de Carvalho em 30/06/2003

«Todas as nações são mistérios» - Fernando Pessoa


Para nós, portugueses, o ano de 1999 foi inesquecível.

Verão fora, percorreu o país uma vaga imparável de excitação, de apreensão, de alegria incontida, de raiva impotente, uma paixão avassaladora que remexeu toda a gente, dando-lhe uma só voz a gritar por Timor, pela vitória, pela tragédia, pela esperança. Há muitos anos que tal não acontecia, os portugueses todos unidos por uma causa. Nem no 25 de Abril, tenham paciência... Talvez estremeção semelhante se tenha dado com a viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral ou, mais atrás, em 1890, quando do ultimato. Há mais de cem anos...

Mesmo já sem Império (ou quase, faltava Macau) ainda lutávamos pelo Império. E não me venham cá com histórias de solidariedade na luta pela democracia ou revoada de ajuda humanitária, coisas dessas. Portugal estremeceu até ao fundo do seu ser. Num assomo de responsabilidade? Sim, profunda, bem sentida. Profundo afecto, profunda saudade. Como se, de repente, se tivesse reencontrado consigo próprio, renascido da «vil tristeza», da chateza dos dias, das abstenções eleitorais, de governos cinzentos, de horizontes limitados pelo futebol e por Bruxelas.

Segundo o mais conceituado intelectual da nossa praça, Portugal criou-se como destino, desenhando para si desígnios de grandeza excessiva, de expansão no mundo desmesurado e esgotante, um Quinto Império feito de ilusão. Caídos agora na realidade, teríamos de olhar a nação, órfã do Império, de modo mais lúcido e humilde. Seremos o Senhor Oliveira da Figueira, esse português que aparece nas aventuras do Tim Tim, comerciante obsequioso que vende tudo pelas sete partidas do mundo, conta histórias tristes, chora e serve vinho da terra? Felizmente para o orgulho nacional, está sempre do lado dos bons...

Não estou de acordo com Eduardo Lourenço na sua desmistificação do sonho português e da cura que lhe propõe. Quem aceita ser português e ser lúcido? «Pelo sonho é que vamos» nos dizia Sebastião da Gama. «Cada vez que um homem sonha/ o mundo pula e avança» como cantava António Gedeão. O novo horizonte é sempre o sonho, ilhéus apertados entre o mar e as Espanhas. Neste imenso cais de despedida que é Portugal, os emigrantes pobres saem para a Europa, os mais inteligentes vão estudar para a América e por lá ficam.

Em 1961, quando começou a guerra colonial, dizia-me uma camponesa alentejana, analfabeta, bem estabelecida na sua charneca: «E agora se nos tiram Angola para onde é que nós vamos?»

Com o arriar da bandeira portuguesa em Macau, perdemos o resto do Oriente, esse Oriente onde a língua portuguesa chegou a ser língua franca. Perdemos o Oriente... Nas genealogias das famílias portuguesas do século XVI lá se menciona, insistentemente, «falecido no Oriente...», «Desaparecido no Oriente...». Não há mais Oriente para ir morrer.

O que nos resta? Redescobrir de novo a hispanidade dentro da Europa para equilíbrio das nações concordes num futuro comum? Apostar forte na lusofonia, na missão de cooperação e missão evangelizadora? Aprofundar a ligação ibero-americana numa «globalização» que iniciamos há séculos?
Nunca houve em Portugal tantos e tão bons poetas como no século que acabou, como se esta florescência final de um destino de devoradores de sonhos nos agarrasse a esta nesga de terra, irmã da saudosa Galiza que é guardiã de Compostela, o rumo espiritual dos europeus durante séculos. Finis terra. Um destino espiritual comum, Compostela-Fátima, numa Europa que perde a sua alma...

Como diz o Poeta:

«Cumpriu-se o mar.
O Império se desfez.
Senhor! Falta cumprir-se Portugal!»

Da mestre * Sophia

O Rei de Ítaca

A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei da Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado



Sophia de Mello Breyner Andresen
O Nome das coisas (1977)

*Não quero usar mestra, mas se me obrigarem...

segunda-feira, outubro 31, 2011

Reflexões à toa sobre as medidas – II - A falácia dos feriados e a nova China


http://www.wmich.edu/registrar/
assets/images/photos/calendar2.jpg

No governo está gente que até parece que nunca trabalhou. Com outros. Por isso vou ter de fazer um intróito. Simplificando, tanto na função pública como nas empresas privadas, há 3 espécies de trabalhadores: os que trabalham muito, os que trabalham e os que se encostam.
Como tenho dito inúmeras vezes, o problema não está nos feriados ou pontes, está em pôr a trabalhar quem não trabalha nos outros dias.
Essa história dos 37 milhões que custam os feriados não convence ninguém. Podiam falar dos 15 mil milhões das PPPs, mas disso, silêncio.
Tirar feriados não vai pôr os que se encostam a trabalhar, nem a trabalhar muito os que trabalham.
Então na função pública, a conjugação de cortes em cerca de 40% no salário (o corte do ano passado mais os subsídios do próximo) com a farsa da avaliação e agora a retirada de dias de descanso, vai transformar funcionários que já eram mal pagos em completamente desmotivados. Os que trabalham e os que trabalham muito vão trabalhar menos, enquanto os que se encostam vão continuar encostados.
Sem dúvida um grande prémio de produtividade e verdadeiro incentivo da meritocracia. Ganham os encostados. Como sempre.
Não deixem que vos mintam, como aqui.
Fui verificar os feriados nos outros países da dita União Europeia e comecei pela própria Comissão (ver aqui). Ora bem, esta tem 18 dias feriados em 2012, teve 17 em 2011 (parece-me que são mais, porque falta o 1 de Janeiro…). E foram estes senhores, que fazem parte da troika que disseram que temos feriados a mais?
Vamos então aos outros. A versão oficial minimalista está aqui. Digo minimalista, porque não tem todos os feriados. Andei pela Internet à procura deles e encontrei sempre versões contraditórias. Sei por isso que esta versão oficial não é “completa”. E também alguém que fez exactamente o que eu estava a fazer (desisti porque senão não publicava isto a tempo) não tem tudo (ver aqui).
Outra versão oficial que parece melhor, é aqui.
Mesmo utilizando a tal versão oficial que reafirmo estar incompleta (vide faltar o 6 de Janeiro a Espanha e o facto de cada Estado na Alemanha ter mais feriados além destes), podemos verificar o seguinte:
O Estado membro que menos feriados tem, é o Luxemburgo, com 7 (mentira, porque tem mais 2). O que tem mais feriados é a Bélgica, com 23 (nesta versão ainda falta o 23 de Dezembro, por isso serão 24).
Portugal tem 13 feriados que como noutros países, algumas vezes calham em sábados ou domingos e por isso não são gozados autonomamente, a não ser por alguns sectores.
Por esta versão “oficial”, a média de feriados será de 12,56, o que quer dizer que até estaríamos na média…
Há 8 países com mais feriados que Portugal, e outros 5 com exactamente o mesmo número, e outros 5, só com menos 1.
Entre eles estão países dos mais competitivos da União. Por isso, como se vê, o problema não está nos feriados, e querem tirar 4!!! Ou seja, vamos passar a ser os escravos da Europa.
Tomar esta decisão é fingir que se resolve um problema não o resolvendo.
O fim desta medida e dos cortes em salários, só pode querer dizer que querem transformar Portugal na China da Europa.
Que coisa tão fora-de-moda… Não esperava isto de quem veio do Canadá.
Esta estratégia da competitividade através do baixo custo da mão-de-obra pensava eu que era coisa do passado, tanto da ditadura como dos anos 70.
Isto é que se chama regredir e voltar a perder no terreno da competitividade dos chamados países desenvolvidos…
Odeio mentiras e falsidades que não têm como fim aquilo que é prometido. Continuam a querer meter a cabeça debaixo da terra, à custa de quem trabalha.
Pois, porque quem não trabalha, não se rala mesmo nada. 

domingo, outubro 30, 2011

Nesta casa, quando abrimos qualquer gaveta ao acaso, é certo e sabido que nos saltam para o colo fotografias ou gravuras de Dom Miguel, Dom Duarte Nuno ou D. Domingos Frutuoso (dominicano que foi Bispo de Portalegre em tempos muito idos).

sábado, outubro 29, 2011


A minha casa é esta. Neste Alentejo especial, amancebado com Ribatejo e Beira Baixa. No entanto, nem agora é minha nem provávelmente virá a ser.
Grande parte das memórias de infância está aqui. Memórias solitárias e memórias partilhadas com irmãos e primos.
Estão cá as folhas dos concursos de desenho que a avó organizava para os nossos pais, com a respectiva classificação, que incluía menções honrosas. Às vezes o mais novo também ganhava o primeiro prémio.
Estão cá as sebentas que a avó comprava para cada um dos netos com esperança de que tivéssemos tanto jeito para o desenho como nossos pais.
Ao serão, sentávamo-nos todos à volta da camilha, os pés dependurados das cadeiras demasiado altas, e à luz do candeeiro a petróleo cuja chama a avó ia regulando numa rodinha, sempre com atenção para que a rede da chaminé não se queimasse, esforçávamo-nos para que daquelas páginas de papel saísse qualquer coisa de genial. Não saía.
Pode a casa até cair de um dia para o outro. Se cá estiver, morro na casa que quero como minha. Afogada nas memórias e feliz.

sábado, outubro 22, 2011

Reflexões sobre medidas - I


Ainda no governo anterior, e por razões economicistas ou lá como lhes gostam de chamar, decidiram cortar nos transportes dos doentes.
Claro que isto só afecta os doentes da chamada "província" e é uma vergonha. Se havia abusos, era fiscalizar os abusos. Como de costume e por conveniência orçamental, paga o justo pelo pecador.
Vê-se mesmo que são decisões de quem tem chauffeur ou autocarro à porta. 
Por questões económicas, tiraram ao interior as escolas, os centros de saúde, hospitais, tudo. 
Eles que paguem as deslocações às unidades concentradas, tão mais económicas para o Estado, não é? Reitero a minha proposta. Os governos que vivam um mês sem carro numa aldeia isolada. 
Percebem logo. 
Aliás já perceberam, mas os votantes estão no litoral, querem lá saber dos velhotes de aldeias de que nem sabem o nome e que têm uma reforma que não paga o táxi...
Até já desconfio de que no fundo se planeia um genocídio de todos os velhotes indesejados que vivam bem longe da vista. 
Se não é, disfarçam muito bem.

sexta-feira, outubro 21, 2011


Aviso: não pretendo fazer crítica literária (ignara...!).
Depois de ler o difícil mas fantástico e fantasioso At Swim-Two-Birds, gostei imenso deste.
Muitíssimo bem escrito e engraçado.
Uma liberdade na escrita que se admira e rapidamente nos deixamos levar pela imaginação do escritor.
Brilhante.

No centenário do seu nascimento.

quarta-feira, outubro 19, 2011


18 de Outubro de 2011. Toda a manhã numa inquietação.
12h 50m. Hora de almoço. Desço no elevador com outros, em silêncio. Saio e caminho depressa para as escadas ansiando o ar fresco, já de cigarro na mão.
As lágrimas não esperaram. Silenciosas, amargas, sem controlo.
Estranho. Abano a cabeça tentando sacudir o incómodo. Não resulta, e de cabeça baixa acendo o cigarro. Uma gota libertária salta para o dedo e molha o cigarro.
Dou uns passos esperando que o objectivo almoço seja distracção suficiente para acabar com o disparate. Nada a fazer.
Cedo. Porque não? Tantos e tantos anos de roubos, enganos, ganâncias, corrupções, impunidades, e nós revoltados, angustiados, impotentes. As vozes que não são ouvidas. Nem antes, nem agora.
Queremos acordar do pesadelo e não nos deixam. Não há luz ao fundo do túnel porque já não há túnel. Continuam a soterrá-lo usando sempre as mesmas pás.
Afinal, choro por Portugal. Deixem-me ter esta fraqueza. Hoje.
Amanhã vou escavar o túnel com as minhas pás. 

domingo, outubro 16, 2011

Reflexões à toa sobre a crise - II


Até agora parece que a solução brilhante para a crise tem sido o contrário do que todos apregoavam.
No antes, enumeraram mil e uma soluções, com números elucidativos, expostos com paixão e indignação.
No depois, as mil e uma soluções reduziram-se a uma. 
Impera a falta de imaginação e a criatividade, e como sempre a solução mais fácil é a vencedora.
Os eternos pagadores dos crimes de outrém, os maus da fita porque diabolizados face à opinião pública, são os funcionários públicos que levam com aumentos de impostos disfarçados em cortes de despesa.
É imediato, os outros respiram de alívio porque não lhes toca e até acham muito bem, porque os funcionários públicos merecem o pior dos mundos.
Parece que agora também os pensionistas, cujos proventos são controlados pelo Estado, passaram a ser outro instrumento útil para a caixa registadora pública.

Das soluções do antes, nunca mais ninguém vai ouvir falar. Talvez uma ou duas para o conveniente disfarce.

sábado, outubro 15, 2011

Reflexões à toa sobre a crise - I


Alguém andou a roubar os portugueses. Alguém andou a ganhar com negócios obscuros. Alguém assinou esses contratos, essas vilanias, esses esbulhos. Alguém de olho torvo posto no lucro, como diria meu avô citando Eça, gananciou e embolsou.
Se numa empresa privada isso daria direito a um processo criminal imediato, alguém me explique porque é que esse alguém não pode ver o seu torpe acto criminalizado, mesmo com as leis actuais. Um gestor público quer tenha a designação de ministro, secretário de Estado ou gestor de empresa pública, não tem responsabilidades, ou só tem direitos, especialmente o de roubar, favorecendo terceiros?
Quando assinam o compromisso de honra, “afirmo solenemente pela minha honra que cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas…” e se lesaram interesses públicos, a lealdade ficou onde?
É preciso haver legislação específica para condenar pessoas que actuaram com sabemos? Não basta a quebra do compromisso? 
Ou a honra já não vale um cêntimo?

terça-feira, outubro 11, 2011

Desconheço-te mas fazes-me falta.

1001


maanumberaday.blogspot.com

Não, não tem nada a ver com mil e uma noites. É apenas o número de visualizações até hoje deste meu cantinho bloguista (pode até ser mais, porque não contei durante algum tempo). 
Comecei em 18/05/04, devagarinho, com muitas interrupções, mas parece que já estarei apta para finalmente tirar a carta de condução de blogueira. Pelo menos a de velocípede.
Sei que muitas pessoas dão de caras com isto apenas porque pesquisaram certas palavras. Não encontraram com certeza o que queriam. Não interessa. Espreitaram pelo buraco da fechadura e viram a minha sala. Não faço ideia se gostaram ou se fugiram arrepelando os cabelos de horror.
Afinal nem é preciso espreitar, a sala tem a porta escancarada e esqueço-me disso com frequência. 
Tenho perfeita consciência da inconstância dos textos, da fraca qualidade de muitos, da mistura caótica de temas (nisso até reflecte a minha sala real!). O que está mal, mal fica. Não tiro nada, porque assumo o bom e o mau. Se isso não me ajudar a crescer, não sei o que fará.
Só posso agradecer a todos os que têm a infinita paciência de me ir lendo nos dias bons e nos dias maus.
Obrigada! 

domingo, setembro 25, 2011

Temos Grande Vigarice


http://pt.wikipedia.org/wiki/TGV

O assunto TGV, também conhecido por Temos Grande Vigarice, vem à tona ciclicamente e os ciclos têm-se tornado cada vez mais curtos, porque não há maneira de sabermos em que é que ficamos.
Voltando atrás, o chamado clube dos 5 daqui e o clube dos equivalentes no país vizinho, com o alto patrocínio da oligarquia bruxelense, acharam que era uma grande ideia (bem desconfiamos quem lhes vendeu a dita ideia) ter um comboio caríssimo em alta velocidade, ligando Lisboa a Madrid.
Vai daí, alta propaganda da ligação à Europa, do fim do periferismo deste recanto, de um país só ser realmente um país “moderno” com TGV, de uma obra para a história, enfim, o costume.
Nunca disseram ao povo aquilo que o povo certamente teria direito de saber. Não era necessário, pois então? Para quê? Os senhores engenheiros e políticos é que sabem!
E algumas perguntas simples na altura seriam, por exemplo, quanto se iria gastar de fundos comunitários e nacionais, quanto tempo ficaria Portugal a pagar (ou seja, até aos trinetos ou ad aeternum?), se seria rentável e quando (http://youtu.be/3jR5dZ9aAHg), se não era rentável, quanto nos custaria por ano…
Depois começaram a falar em suspensão por causa da falta de dinheiro. Suspensão… Não desistência.
A seguir aparece a ideia do comboio de mercadorias para ligar ao Porto de Sines. Não tardou em passar ao TGV Light, mágica solução contra a obesidade (embora os médicos já tenham avisado que os produtos light são enganadores). Agora falam em sanduíche mista.
Um dos argumentos mais invocados é a perca de fundos comunitários. Ora essa… Então não é a própria Europa que sabe a situação em que estamos e supostamente até nos está a ajudar? Se quer o nosso bem e projectos com cabeça tronco e membros, vai financiar um que nem é rentável? Afinal quem é que não é bom gestor? Ou será que é por haver empresas de determinados países que estão interessadas em vender e por isso a tal senhora Europa fecha os olhos?
Será que Portugal vai cair na asneira da Grécia e desatar a comprar coisas caríssimas a empresas de certos Estados membros mesmo que não precise delas (a Grécia, já em austeridade foi empurrada a comprar fragatas e submarinos, ver “Broke? Buy a few warships, France tells Greece” ou aqui “Greece announces agreement on German U214 submarines”). 
Se a Europa quisesse verdadeiramente o desenvolvimento dos Estados membros, só poderia ver com bons olhos que, em alternativa a projectos megalómanos e ruinosos, se aplicassem os mesmos fundos na melhoria das ligações ferroviárias e rodoviárias já existentes. Ou não?
Quanto à linha de mercadorias, é mesmo aquela linha que é necessária, ou será outra linha noutro sítio? O que serve melhor os interesses das empresas exportadoras? São esses interesses que deviam estar em mais jogo, não é? Os das importadoras supostamente não deviam interessar tanto… E querem à viva força ver se a cratera Porto de Sines diminui o buraco, esquecendo-se que é um elefante branco sem salvação, e nos devíamos voltar antes para encontrar soluções que reanimem a economia portuguesa, a indústria portuguesa, a agricultura portuguesa.
Ainda ninguém percebeu em que ficamos afinal. E continuamos a querer respostas a perguntas, opiniões de especialistas na matéria e independentes, estudos de viabilidade…
Por isso, seja qual for a decisão, a sociedade civil tem de deixar de ser manipulada e passar a ser exigente. Exigir essas contas, estudos e opiniões independentes de todos os sectores.
Já agora, a manterem-se estas teimosias, se me permitem, gostava de um referendozinho, para ter finalmente a oportunidade de expressar o meu veemente NÃO com força de lei.

sábado, setembro 24, 2011

Fim-de-tarde alado



Como é sabido, os pássaros, talvez com algumas excepções, são muito gregários. Adoram voar em gangs, a que chamam prosaicamente bandos e sempre que um pousa, pousam logo uns cinco ou seis, mesmo que por vezes, no fio de alta tensão, tentem ser discretos e deixem algum espaço entre si fingindo não se conhecerem.
Até quando a sua vida familiar os leva a desleixar um pouco os outros, para dedicação à construção da sua casa, apoio à maternidade e educação da prole, arranjam sempre forma de não faltar ao acontecimento diário mais importante na vida de um pássaro verdadeiramente digno desse nome: o fim-de-tarde.
Ponto de encontro, a sala. A maior árvore das redondezas, quer seja uma inesperada araucária no meio da cidade, quer um carvalho centenário. É o restaurante gigante dedicado a casamentos e baptizados que eles adoram, pois permite agregar todo o bando.
Em alternativa, recorrem às árvores em linha das cidades ou aos pequenos bosques no campo, onde conversam em pequenos grupos mas conseguem ouvir e estar a par de todas as quadrilhices das árvores alheias, como os restaurantes que têm espaços limitados por tabiques e que são tudo menos privados, por mais que lhes dêem pomposamente o nome de privés.
É nesse fim-de-tarde que a conversa é posta em dia. Todos relatam animadamente as suas aventuras e percursos diários, recorrem à má-língua para tornar a conversa mais lúdica, e parecem a minha família espanhola, falando incessantemente alto e ao mesmo tempo, sem deixarem de se ouvir mutuamente.
Contar anedotas é uma das actividades mais apreciadas, e quando uma lhes cai no goto riem às gargalhadas de tal forma que levantam num breve voo em disposição circular, pairam ainda em círculo por segundos e dando elegantemente a volta, regressam aos lugares marcados, para continuar a conversa antes de regressar a casa.
Às vezes, somos. Pássaros. Até nos fins-de-tarde.

sexta-feira, setembro 02, 2011

Esboço de memórias do campo


Fazer o seu próprio pãozinho ao lado da Chica, copiando-a fielmente a amassar, esmurrar com os nós dos dedos e benzer a massa, depois esperar ansiosa que o forno a lenha o coza, detectá-lo no meio dos pães grandes na pá e orgulhosa apresentá-lo na mesa do lanche.
Fazer o seu próprio queijo fresco, à frente da Chica, apertando com vagar o leite coalhado para sair o soro, colocar o cincho, polvilhar de sal grosso e apresentá-lo à mesa do jantar.
Migar couves para as galinhas, sentada numa cadeirinha com um alguidar entre as pernas, e misturar depois com o farelo.
Regar a horta com o Adriano Lourenço, marido da Chica, dos homens mais fascinantes que conheci. Não sei se tinha a 4ª classe, mas adorava Camilo Castelo Branco e tinha lido todos os seus livros. Um poço de sabedoria sobre tudo o que tinha a ver com jardins e hortas e bichos e histórias e Camilo.
Ver a água a precipitar-se nos regos da horta. Controlar a quantidade, rápidamente tapar o caminho com a enxada e abrir a entrada de outro rego, numa sensação eufórica de poder e controlo absoluto.
Ir aos figos, com as recomendações proverbiais: têm de ter capa de pobre, pescoço de donzela e lágrima de viúva!
Ir às amoras de cestinha no braço, e comer mais do que as que se apanharam.
Ir aos medronhos mais que maduros, ao sol, em Agosto, apesar da proibição.
Apanhar marmelos para fazer marmelada e comer um, bem adstringente, pelo caminho.
Escolher arroz, descascar ervilhas, depenar galinhas, untar os queijos com azeite, envolvê-los em palha e pô-los numa talha de barro.
Ir à fonte e beber de um cocho a água gelada mesmo de Verão.
Andar a cavalo. Galopar na charneca, sózinha.
Ir de bicicleta a todo o lado. Observar as ovelhas, as marrãs, as vacas.
Construir uma jangada para a barragem, com câmaras-de-ar gigantes roubadas ao tractor ou à ceifeira, tábuas e cortiça.
Escolher uma cana-da-índia, arranjar fio, chumbada, anzol e miolo de pão e ir pescar achigãs à barragem. Pescar um achigã e o primo, com cana de pesca à séria, não pescar nada.
Montar castelos com fardos de palha um em cada ponta do gigantesco celeiro, trepar até ao cimo e depois atirar os fardos para o castelo dos outros, mesmo com o risco da brotoeja certa.
Pequena amostra do que não se esquece.

sábado, agosto 27, 2011

O jardim


Quando aqui cheguei, por aqui querendo dizer ao campo, ao Alentejo, à quinta da minha avó, já vinha com o coração apertado pelo que tenho visto passar-se há longos anos no País. Queria descansar e acalmar.
Encontrei um estado da nação similar, e o coração quase parou. Nem aqui!
O que pouco interessa, como que a servir de fachada, minimamente limpo e com ar quase ordeiro, num cenário montado para português ver.
Meio escondido, mas só meio, tudo o resto. Assustador.
Ervas daninhas tomaram conta dos canteiros, dos vasos, dos caminhos, impedindo-nos de passar. Glicínias e outras trepadeiras que dão belos cachos floridos mas cujos ramos vão insidiosamente ocupando todo o espaço, pendem do alto e já rastejam pelo chão. Buxos e plantas a secar, no limite da salvação. Algumas das árvores que plantei, especialmente as nogueiras, reduziram-se a meros paus mirrados, no meio do matagal. Salvam-se umas pinheiras e uns carvalhos.
O desânimo dura pouco. Arregaço as mangas e trabalho.
Começo pelos cortes, nas trepadeiras, nas silvas, até nas roseiras que taparam a escada para a capela. Há muito para cortar, parece que não tem fim. Corto, corto, corto.
Depois vou tratar das ervas daninhas. Não quero que fique nem uma. Hei-de arrancar todas.
A seguir, rego, à tardinha…
Assim vai este jardim. Esta nação.
A outra Nação, com as suas glicínias, ervas daninhas e plantas mortas, também precisava disto.

sexta-feira, agosto 26, 2011

A Torre Desencantada - Nos 58 anos da morte de Hipólito Raposo


    No tempo em que, por decisão de um conselho de guerra em Santa Clara, fui hóspede da República na Fortaleza de S. Julião da Barra, todos os dias eu ficava na muralha, à espera de ver luzir o farol do Bugio que fielmente anunciaria a continuação da vida humana dentro daquele galeão de pedras, encalhado no areal, com o dever, cumprido a rigor, de espantar as trevas na noite do mar.
    Começou a interessar-me a sorte obscura da gente que lá vivia e de quem ninguém se lembra ao passar, corno acontece aos fogueiros dos vapores, esquecidos por aqueles que jogam e se divertem, à custa do seu suor.
    Pedi informações e contaram-me histórias incompletas de ciúmes, complicações tenebrosas, sentimentos fatais de homens e mulheres que se enredavam constantemente em suspeitas e acusações, ao contacto forçado de uns e de outras, naquele estreito cativeiro, sem, fácil ligação com a terra firme. A inacção, o descanso e a ociosidade permitiriam, porém, que se dilatasse em largo horizonte, a miragem dos mais ardentes e condenáveis desejos.
    Quando se está preso, reduzido a disponibilidade constante, torna-se a alma mais acolhedora e sensível às pequenas realidades, como aos grandes prestígios da natureza e da vida: a formiga pode engrandecer-se até às proporções do elefante, os astros, ofuscados pelas luzes da cidade, recomeçam a brilhar, com pasmo dos olhos, os factos menos expressivos tornam-se acontecimentos de vulto, examinados ao prisma deformador das nossas aspirações, na limitação forçosa em que se nos contêm a vista, os passos e o poder de acção.
    Na lembrança desperta, dá-se duração e vida ao que é efémero, as impressões sofridas prolongam-se às vezes em tormento voluptuoso, até às zonas do patético.
    Bem dizia Crisfal na célebre carta sua, de antecipado (ou eterno) romantismo:
                                      Os presos contam os dias
                                      mil anos por cada dia...
    A clausura é assim uma condição de análise introspectiva, mas que pode divagar e ampliar-se no silêncio das paredes nuas, ou expandir-se pelo rumor férvido das águas, para cujas queixas sem termo, acabamos nós por ser surdos, felizmente.
    O tumulto em que se nos revelava a vida em liberdade, representa-se ali como ordenação, plano seguro em que já seria grato viver, para viver melhor.
    A vizinhança da Torre de S. Lourenço do Bugio, irmã da de S. Julião para cruzar os fogos de defesa da barra, nos tempos em que era possível defendê-la, estimulava o meu desejo de a escalar, de penetrar o seu segredo, conhecendo a sua gente e sentindo o drama das almas daquelas famílias, adstritas à função invariável, quase-mecânica, de fazer rodar em relâmpagos e eclipses regulares, a luz do farol.
    Senão fosse o Bugio, àquela hora cinzenta do crepúsculo, não sei que pudesse eu fazer do corpo e da alma, no ermo de silêncio e sombra que me cercava e inundava todo o es- paço. E se, por caso fortuito, o lanternim não se acendesse urna noite, teria chegado o momento da consumação dos séculos: pelo menos, a surpresa seria tanta como avistar do Equador uma aurora boreal ou ver chover coriscos do céu sereno.

Setembro de 1929
(In Hipólito RaposoPátria Morena, Porto, Livraria Civilização, 1937)

quinta-feira, agosto 11, 2011

Sem bolsos


Hoje abri a caixa de costura.
E com linha preta, dupla, enfiada em agulha grossa,
pespontei e silenciei todos os meus bolsos.
Um a um.

Porque um a um foram rasgados, pilhados e despejados,
sem contemplações nem misericórdia.
Vazios de sentido, mesmo quando o perto do nada é o quase infinito.

Sobram uns tímidos sonhos, talvez,
mas esses não vivem nem cabem nos meus bolsos.
Mergulham, ofuscando, nos meus olhos.


Leonor Raposo
10/08/11

quinta-feira, agosto 04, 2011

A cesta


Ontem olhei para dentro da cesta e vi-a quase vazia. Um livro, o que leio nos transportes e antes do almoço, um remédio e um papel.
Porque é que saio com ela porta fora todos os dias? Posso perfeitamente pôr tudo aquilo na carteira e dispensar a cesta…
No autocarro ocupa um espaço maior que o seu tamanho indicia, tenho sempre de ter cuidado para não magoar alguém, se me sento não cabe bem no chão a meus pés e acabo com ela no colo, enquanto manobro os braços para ler. As senhoras tanto lançam um olhar de desdém como de curiosidade. Os homens nem ligam.
Resumindo, um verdadeiro empecilho.
Mas um empecilho de que não me consigo livrar. O meu gesto já se tornou automático. Agarrar nas suas pegas e sentir o seu peso ao caminhar, é tão natural, que me iria sentir nua sem ela.




Se a cesta começou por ir às reuniões Europa fora, acabou por ir nas miniférias a Istambul, e acompanha-me todos os dias no trabalho.




Tem uma paciência de santa, ouve-me a berrar com o computador, a falar sozinha, e nunca interrompe.
À saída, se vamos às compras, condescende em ficar atulhada e contribuir para a preservação do planeta.
Já vai também a restaurantes, aos jantares de amigos e à saída de sexta-feira.
O conteúdo é variável e deve ser por isso que nunca se cansa. Há dias em que só carrega o livro e o remédio, noutros tem a felicidade de reencontrar as compras, noutros ainda, transporta delicadamente o portátil, e, mais vezes do que gostaria leva com menosprezo a papelada de reuniões ou trabalho.
Tal como os donos se começam a parecer com os seus cães, também eu estou a ficar irmã gémea da cesta. Rectangular e tudo. Com desenhos por fora.
Agora, meus amigos, eu e a cesta, a cesta e eu, somos tão inseparáveis como os Cinco da Enid Blyton. Talvez mais ainda, mesmo sem as aventuras.
Acho que vou propor a legalização deste casamento.

04/08/10
Leonor Raposo

A página da cesta no facebook:

domingo, julho 31, 2011

Um legado do avô



















Em presença deste sumário de inquietações, mudanças e perseguições, não posso dizer que fiz uma carreira oficial, digna de apresentar-se como exemplo a seguir por quem tenha ambições ou aspire à satisfação de as ver realizadas.
Confesso-me inocente da culpa de haver nascido com alguma tendência para endireitar o mundo, em cada caso ouvindo pessoas discretas dizerem-me que era torta a vara da minha justiça. Então olhava para ela e parecia-me direita.
Vida estéril, inútil para os outros e para mim, resta-me lamentar que estes trabalhos, penas e sacrifícios, de nada tenham servido para bem da comunidade nacional, vendo-me obrigado a reconhecer com melancolia a força de verdade do velho prolóquio: quem serve ao comum, não serve a nenhum.
Esta amarga experiência poderá talvez servir de aviso aos que não tenham força para renunciar a interesses e vaidades, mantendo apenas a honra de sermos nós mesmos na firme coerência dos passos nos trabalhos e ciladas do mundo. Para esse fim, ouso supor algum tanto proveitosa a lição que se poderá colher da biografia oficial de quem nunca se atravessou no caminho dos outros.
Quanto a mim, neste cabo da vida, sem desejar compensações nem alimentar esperanças, nem por glória ou vanglória, quereria seguir outros caminhos se houvesse de tornar a nascer.
Nesta conformidade, leitor malévolo, aconselho-te o riso e prescindo da tua piedade, ao assegurar-te de que voltaria incorrigivelmente a lutar pelas razões da verdade e da justiça, aumentando as folhas deste cadastro, ao serviço da Nação Portuguesa.

Lisboa, 18 de Agosto de 1952.
Hipólito Raposo in Folhas do meu cadastro Vol II

sábado, julho 30, 2011

Normalidade

Todos os anos,
nos mesmos momentos,
nas mesmas torturas,
choro.
Não quero, mas sim,
choro.
Não gosto, mas sim,
choro.
Razões são sempre mil.
E são sempre mais de mil as outras razões
para não chorar.
Piegas.

Cego

Viste a criança com uma estrela na mão?
Viste a estrela que apagou o sonho?
Viste o sonho acordar o homem?
Viste o homem fugir da esperança?
Não viste e ele não agarrou a estrela.

sexta-feira, julho 29, 2011

Régua e esquadro

Nos próximos arranjos administrativos troikistas temo um olhar colonial sobre o caótico mapa existente, munido simplesmente de régua e esquadro para traçar nos organogramas, ignorando as curvas das competências e da voz dos habitantes. 


Exactamente o mesmo temor, ou maior ainda, tenho para as regionalizações troikistas.

segunda-feira, julho 25, 2011

Muito melhor que um filme

Qual filme! A nossa história é muitíssimo mais apaixonante...  
Se lemos, logo ouvimos e vemos!

Sem acordos ortográficos.

1139

Final da Acta das «Cortes de Lamego», reunidas na Igreja de Santa Maria de Almacave


....
Estas são as leis de justiça, e nobreza, e leos o Cancellario del rey, Alberto a todos, e disserão, boas são, justas são, queremos que valhão por nos, e por todos nossos decendentes q despois vierem. 

E disse o procurador del Rey Lourenço Viegas, 

Quereis que el rey nosso senhor va âs Cortes del rey de Leão, ou lhe dê tributo, ou a algûa outra pessoa tirando ao senhor Papa que o côfirmou no Reyno? 

E todos se levantarão, 

E tendo as espadas nuas postas em pé disserão: 

Nos somos livres, nosso Rey he livre, nossas mãos nos libertarão, 

e o senhor que tal consentir, morra, 

e se for Rey, não reine, mas perca o senhorio 

E o senhor Rey se levantou outra vez com a Coroa na cabeça e espada nua na mão falou a todos. 

Vos sabeis muito bem quantas batalhas tenho feitas por vossa liberdade, sois disto boas testemunhas, e o hé tambê meu braço, e espada; 

se alguem tal cousa consentir, morra pello mesmo caso, e se for filho meu, ou neto, não reine; 

e disserão todos: boa palavra, morra. 

El Rey se for tal que consinta em dominio alheo, não reine; e el rey outra vez: 

assi se faça. 

Ref.s José Mattoso, A Realeza de Afonso Henriques, História Crítica, nº 13, 1986, pp. 5-14; reed. in Fragmentos de uma composição medieval, Lisboa, Editorial Estampa, 1987, pp. 213-232.