No tempo em que, por decisão de um conselho de guerra em Santa Clara, fui hóspede da República na Fortaleza de S. Julião da Barra, todos os dias eu ficava na muralha, à espera de ver luzir o farol do Bugio que fielmente anunciaria a continuação da vida humana dentro daquele galeão de pedras, encalhado no areal, com o dever, cumprido a rigor, de espantar as trevas na noite do mar.
Começou a interessar-me a sorte obscura da gente que lá vivia e de quem ninguém se lembra ao passar, corno acontece aos fogueiros dos vapores, esquecidos por aqueles que jogam e se divertem, à custa do seu suor.
Pedi informações e contaram-me histórias incompletas de ciúmes, complicações tenebrosas, sentimentos fatais de homens e mulheres que se enredavam constantemente em suspeitas e acusações, ao contacto forçado de uns e de outras, naquele estreito cativeiro, sem, fácil ligação com a terra firme. A inacção, o descanso e a ociosidade permitiriam, porém, que se dilatasse em largo horizonte, a miragem dos mais ardentes e condenáveis desejos.
Quando se está preso, reduzido a disponibilidade constante, torna-se a alma mais acolhedora e sensível às pequenas realidades, como aos grandes prestígios da natureza e da vida: a formiga pode engrandecer-se até às proporções do elefante, os astros, ofuscados pelas luzes da cidade, recomeçam a brilhar, com pasmo dos olhos, os factos menos expressivos tornam-se acontecimentos de vulto, examinados ao prisma deformador das nossas aspirações, na limitação forçosa em que se nos contêm a vista, os passos e o poder de acção.
Na lembrança desperta, dá-se duração e vida ao que é efémero, as impressões sofridas prolongam-se às vezes em tormento voluptuoso, até às zonas do patético.
Bem dizia Crisfal na célebre carta sua, de antecipado (ou eterno) romantismo:
Os presos contam os dias
mil anos por cada dia...
A clausura é assim uma condição de análise introspectiva, mas que pode divagar e ampliar-se no silêncio das paredes nuas, ou expandir-se pelo rumor férvido das águas, para cujas queixas sem termo, acabamos nós por ser surdos, felizmente.
O tumulto em que se nos revelava a vida em liberdade, representa-se ali como ordenação, plano seguro em que já seria grato viver, para viver melhor.
A vizinhança da Torre de S. Lourenço do Bugio, irmã da de S. Julião para cruzar os fogos de defesa da barra, nos tempos em que era possível defendê-la, estimulava o meu desejo de a escalar, de penetrar o seu segredo, conhecendo a sua gente e sentindo o drama das almas daquelas famílias, adstritas à função invariável, quase-mecânica, de fazer rodar em relâmpagos e eclipses regulares, a luz do farol.
Senão fosse o Bugio, àquela hora cinzenta do crepúsculo, não sei que pudesse eu fazer do corpo e da alma, no ermo de silêncio e sombra que me cercava e inundava todo o es- paço. E se, por caso fortuito, o lanternim não se acendesse urna noite, teria chegado o momento da consumação dos séculos: pelo menos, a surpresa seria tanta como avistar do Equador uma aurora boreal ou ver chover coriscos do céu sereno.
Setembro de 1929
(In Hipólito Raposo, Pátria Morena, Porto, Livraria Civilização, 1937)
Ver o resto em http://www.angelfire.com/pq/unica/il_hipr_torre.htm
Muito bom. E eu que nunca tinha lido nada de Hipólito Raposo... :) Obrigada.
ResponderEliminarObrigada Leonor por nos lembrar de onde viemos e para onde devemos ir. Como a luz do farol do Bugio. A abrir caminho e a desviar as armadilhas.
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