sábado, agosto 04, 2012

Grito


Se um dia contasse a sua história, começaria assim, num dia cinzento. Não que ele o seja, mas o destino o ditou ou, para dizer a verdade, porque me apeteceu.
Nesse dia, o tal cinzento, com pequenos rasgos prometendo o fatal azul da tarde, saíra cedo de casa sem hesitações em direcção ao campo. Gostava de o ver pela fresca, pontilhado pelo orvalho.
Parou na berma da estrada junto a uma seara de trigo. Já era a única na região. Chamara-lhe sua, dera-lhe um nome dos seus, porque era uma sobrevivente, como ele da guerra.
Saiu do carro e meteu-se seara adentro, sem rumo nem leme. As cigarras calavam-se, respeitando a medida dos seus passos. Até que foi ilha no meio daquele mar. Uns corvos levantaram voo grasnando, com medo da ilha. 
Ali parado e vieram a correr cores, cheiros, sons, todos seus, mas que por ali andavam à rédea solta. 
Enquanto caminhara até ao meio da seara, os pensamentos do mundo, o outro, não o largaram, reclamando aos gritos, sem cessar, direitos exclusivos de espaço, talvez intuindo o seu iminente despejo.
Enfim chegara o vazio. Recomeçaria, na mudez da seara. 
Devagar, começou por pronunciar em silêncio o seu nome. Mastigado. Deu-lhe depois voz, em sussurro, e continuou, em crescendo, até gritar bem alto o seu eu, esperando eco.
Retomado o silêncio, pronunciou o nome dela. Sem mastigar. Repetiu o processo até o grito lhe sair da garganta.
Foi então que voltaram os corvos.