domingo, novembro 10, 2013

Ainda Beja (Hipólito Raposo)

Beja sabe muito bem cantar e ninguém lhe ensinou. Em famosos acentos de exaltação, tristeza, saudade e amor, por estas noites de folguedo andam a cantar rapazes e cachopas ao ar livre, senhoras e criadas dentro de casa, trauteiam os garotos de recados e os engraxadores, entoam melancólicas lembranças os velhos, e pela sua débil voz, já riem e também sonham as crianças pobres da rua.
Na cidade de Beja, metrópole de zagais, não se assobia, canta-se colectivamente. Quando os coros a outros coros respondem, por este nocturno antifonário, parece que tomam voz as pedras e as árvores, os telhados e as muralhas, as praças e as vielas. Por voltas de acaso ou por impulsos de competição, todo o aglomerado urbano reboa de dominadoras polifonias que vão ouvindo e meditando os transeuntes silenciosos, enquanto do pálio dos altos céus choram luz as estrelas, talvez por não saberem cantar…
Por estas noites de tradicional expansão, em que na fé do povo esquecidas vão as virtudes dos Santos do calendário, das fogueiras se levanta em perfumes de hortelã, funcho e mentrasto, a mais funda e saudável respiração da terra. Sucedem-se em desfile regular os grupos corais para demonstração e provas de um exame em que se pode ganhar o prémio e o louvor dos entendidos, já pela cidade todos dispersos, ocultos, a escutar…
Cinco, seis formações de vinte cantores, vão surgindo de uma esquina por sua ordem, detêm-se nas praças, enchem de ecos as ruas caladas e absortas. Depois, andam, desandam vagueiam pela noitada até aos alvores do sol-nado, levando após eles devotos, curiosos ou admiradores.
Ao mesmo tempo, o povo cuidadosamente os ouve e julga, alinhado em renques de multidão respeitosa, auditório de mulheredo e de morenos rurais, aqui uns de manta e vara, acolá outros de pelico e safões bem lanudos e encorreados.
E a segui-los, sèriamente, embevecidamente, todos os olhos de essa gente do Sul, extáticos e saudosos da distância, pasmados na avidez dos longes, olhos firmes e dilatados, como luzeiros de alma, à espera desde o primeiro princípio, sempre à espera da hora de vencer os ilimitados limites do Além…
Nas vozes destes músicos iletrados que de dia são pastores, ganhões, homens de ofício e caixeiros, ouvem-se redondilhas de poetas de talento e sem nome, loas votivas ou hinos à sua amada terra em que sempre vibra o velho orgulho alentejano:
De Pax Julia fui Beja,
Minha nobreza é antiga,
E às outras causa inveja
       O bem que de mim se diga…
Em estrofes bem rimadas, desafogam-se mágoas, exaltam-se sentimentos colectivos ou gemem-se queixas de amor, que a música às vezes desmente, sem qualquer cerimónia nem reparo dos ouvintes…
Os cantadores vão-nos levando com eles para altitudes de entusiasmo ou para zonas de pura comoção humana. 
…corais espontâneos, geralmente constituídos por homens, alguns outros mistos, neles entrando quatro ou cinco raparigas, com vozes de maviosa clareza e suavidade.
...
Ninguém sabe como nasceram, onde se inspiraram, que escola tiveram estes aedo-campaniços que um rapsodo guia, dando o ponto, a dialogar com o coro ou a fundir-se nele em harmoniosa orquestração.
Em filas ordenadas se deslocam, enlaçados pelos braços uns dos outros, para constituir solidário volume de órgão vivo, movendo-se com lentidão mais que alentejana, de olhos fechados os de maior transporte, para deixarem subir as almas harmonizadas até aos balcões dos castelos das nuvens e das estrelas.
Solene, respeitoso, ritual, é o andamento na rua, em que as filas de balançam de lado a lado, com o mais vagaroso compasso.
Os pés deslocam-se a oscilar em esboços coreográficos, como se por obediência a remota inspiração, uma dança litúrgica se fosse ali executando para subir em pomposa solenidade, a grande nave de uma catedral.
A qualquer conclusão a que chegue o investigador pelo caminho da verdade, por análises e confrontos essenciais, não comecem a dar mestres de Música aos cantores rurais de Beja nem os queiram eles aceitar, a título de aperfeiçoamento, para não vir a perverter-se a espontaneidade, a sinceridade das suas modas, o religioso e agreste encanto do seu Canto.

Junho-944 – Beja Cantadora Hipólito Raposo in Oferenda 

sábado, novembro 09, 2013

Da costura

Olhei para o sítio específico da “roupa para coser” e suspirei. O pequeno monte tinha-se tornado montanha, precisava de alpinista. Lá teve de ser. Uma escalada de agulha e linha na mão.
Quem me conhece de pequena sabe da minha falta de jeito para tudo o que seja manual. Sabem destas mãos desastradas.
Até ao 5º ano (actual 9º) tínhamos as disciplinas de Desenho e Trabalhos Manuais (para as meninas eram afinal lavores). Era dada nota por cada uma mas depois contava a média como se fosse apenas uma. Sucede que nada do que fazia resultava, quer a uma quer a outra.
A Desenho, especialmente o geométrico, depois de extenuante esforço com o compasso, régua e esquadro, para produzir qualquer coisa aceitável (sempre era melhor que o desenho livre!) temia o tira-linhas e a tinta. Todo o trabalho anterior ficava oculto debaixo dos borrões, o que era uma injustiça mas ninguém entendia. Isto para não falar de nem com a régua conseguir desenhar uma recta que fosse recta. Eram sempre rectas especiais. À minha maneira.
A Lavores ficou célebre a minha “roseta” de crochet num teste, porque mais parecia uma miniatura de boina. Esquecera-me de acrescentar qualquer coisa a cada fila. O tal enxoval de bebé, para o qual fazíamos uma ou duas peças por ano, teve sempre de ser acabado pela professora (odiosa, diga-se) e acredito que ainda tivesse de desmanchar a minha parca e deficiente produção.
Estas mãos de bruxa, porque de fada não eram, davam pois direito a negativa negativíssima.
No colégio acabavam por ter pena de mim, sempre com boas notas nas outras disciplinas e um desastre naquelas. Assim, as duas notas eram “levantadas” para que não chumbasse. Lá estavam, bem a encarnado na caderneta, para que soubesse do “levantamento”, o 9 a Desenho e o 10 a Trabalhos Manuais, ou vice-versa consoante os anos.
Hoje sei que parte do desastre tinha a ver com ser canhota. Não me adaptava aos instrumentos…

Por isso, sinto que em cada botão pregado, em cada bainha feita, em cada passajar de meias, em cada buraco cosido, por pior que fiquem, por mais tortos os pontos, estou a subir aquelas notas a encarnado. Nunca hei-de chegar ao 20, mas não preciso.