sábado, junho 04, 2011

De como o dia-a-dia destrói as melhores teorias

Uma das coisas que me lembro bem de casa da minha mãe era o livro do Dr. Spock, versão “pocket”, que incluía uns desenhos engraçadíssimos, mas já com muitas folhas soltas, resultado óbvio da constante solicitação por parte de desvelados pais primeiro, e depois por mãe-viúva em permanente desconcerto perante as três terríveis criaturas que lhe couberam em sorte, após uma linda espera e nascimento proporcionados pelo fantástico Dr. Monjardino.
Pensando que os resultados alcançados por tal consulta a essa «Bíblia» não teriam sido tão maus como isso, a minha barriga de 5 meses já tinha devorado os capítulos pelo menos até ao ano de idade.
Após o feliz acontecimento obtive também a possibilidade de consultar as revistas emergentes sobre o assunto, com a natural sofreguidão de quem não quer cometer muitos erros.
Assunto frequentemente abordado e com opinião firme generalizada é “criança na cama dos pais”, ao qual sempre fui sensível, logicamente concordando com a negativa expressada sobre tais situações.
Tal nunca englobaria, na minha opinião, aquelas manhãs saborosas de fim-de-semana, férias, Natal, etc.... de que na minha mente perduravam as memórias de nós os três enfiados numa cama de corpo e meio e disputando o lugar ao lado da mãe. Agora já tenho alguns remorsos retroactivos em relação àquela “mater familias”, cujas manhãs livres eram disputadas logo às 8 horas, mas o bem que sabia sobrepunha-se a todo o desconforto causado.
Seguindo este raciocínio, quanto a minha criança aos 18 meses, lá descobriu como saltar da cama (não sei bem como, mas parece que tinha a ver com uma cómoda um pouco afastada da cama), começou o fatídico percurso entre o seu quarto e o nosso.
Ao princípio, sucedia relativamente cedo, 11 horas, meia-noite, pelo que o percurso contrário era rapidamente percorrido sem grandes alaridos, até porque dava direito a colo.
Só que ninguém conta com o inconsciente escondido da mente infantil, e quando a vontade é muita, nada há que o faça parar...
Assim começou a medir forças.
Como à meia-noite ou 1 hora da manhã o resultado não satisfazia, aquela mente perversa tratou de contornar a situação. A primeira coisa de que se lembrou foi de levantar obstáculos no percurso, que consistiam em fechar a porta do seu quarto e depois a porta do quarto dos pais.
Perante resultados infrutíferos, foi adiantando a hora de aparecer, até que descobriu a hora ideal (ainda hoje estou para saber qual é, mas situa-se algures entre as 3 e as 6 horas da manhã).
A tal hora ideal só se depara com duas situações: ou ninguém por nada; ou se alguém dá por alguma coisa, ainda tem o desplante de colocar o melhor sorriso de vitória naquela carinha, dar um beijinho complacente na testa e pedir para lhe aquecerem os pés.
Perante tais factos e uma criança um pouco fora do vulgar (com 4 anos mede um metro e quinze centímetros e pesa 30 quilos) desafio qualquer autor dos tais artigos a cumprir as suas teorias (até forneço a chave de casa!).
Quanto a mim, conformada e aspirando a melhor estado da minha coluna, respondo: - Levem-na para a cama dela vocês!

Leonor Raposo.
(mãe da Marta)
Publicado na secção de Perguntas e Respostas da Revista Pais & Filhos de Março de 1994

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