Num tom que não admitia
contestação, declarei do alto dos meus três anos que queria ler. Não me lembro
da resposta mas deve ter soado a hesitação porque não mais larguei o assunto
até forçar uma rendição total.
Comecei então a ver a mãe a
recortar fotografias de revistas e a guardá-las. Intrigou-me, aquele mistério.
Parecia uma brincadeira que me estava vedada, e olhava entre o curiosa e o
zangada aqueles recortes coloridos. Até que um dia percebi: do desvelo de mãe saiu
um dossier pequeno, com algumas folhas
brancas. Nestas, cuidadosamente seleccionados estavam colados os tais recortes
de revistas e, à frente de cada boneco, uma letra.
Finalmente ia ler! Sofregamente
absorvi as letras e depois as sílabas, obrigando a desesperada mãe a pensar em
palavras que pudesse construir com o já aprendido e voltar às revistas para
encontrar os bonecos adequados. Ainda me lembro da folha que tinha um cavalo. Já
na altura era uma paixão, e o conseguir ler o nome da coisa amada comoveu-me. Tinha
conseguido! O dossier foi aproveitado para o irmão seguinte, mas o interesse
não era o mesmo, e quando chegava ao cavalo, olhava para a mãe com ar
triunfante e dizia sempre: Égua! Acho que ficou por ali.
Em casa da avó, na Rua de S. Ciro
ou no Alentejo, a mãe conseguia descansar um pouco da minha impaciência e dava
lugar à avó. Sentadas à camilha, eu numa cadeira com várias almofadas que me
faziam ter os pés ainda mais longe do chão, começava a lição. A avó pegava num
livro qualquer e com o seu vagaroso dedo indicador ia apontando as palavras que
eu tinha de ler e das quais não tinha a mínima ideia o que significavam. Eram
sílabas. Lindas. Uma vitória saborosa. De vez em quando, aquele carinhoso dedo enrugado
tapava as minhas sílabas e eu, chorosa, chamava a mãe em meu auxílio: Ó mãe, a
avó não me deixa ler!
Pouco a pouco deixaram-me à
solta, e aos cinco, lia os livros da Enid Blyton, “Os Cinco”, não percebendo
metade e perguntava sempre à mãe o que era “um fim emocionante”.
Em casa da mãe havia tudo. Pude
ir devorando sílabas. Portuguesas primeiro, mais tarde as francesas e inglesas.
Passaram também a ser minhas, estas.
Num dos escritórios no Alentejo estavam
os livros mais infantis, os da Condessa de Ségur, com gravuras e ortographia da
época. Minha querida Sophia, como sofri com os teus desastres!
Na sala havia uma pequena estante
com livros fascinantes que me acompanharam vida fora. Na prateleira de baixo
estavam os livros de estudo da minha avó e tias-avós, e os que serviram também
a mãe e tios. Passei férias inteiras a aprender francês, inglês, história e
geografia em livros do séc. XIX ou princípios do séc. XX, cujos exercícios
passava para um caderno comprado na vila.
Já mais velha lia os da
prateleira de cima, romances cor-de-rosa, como “John chauffeur russo” ou “Água
pela barba”. As histórias das meninas pobres e príncipes ou vice-versa,
repetidas à exaustão com diferenças que nos davam a ilusão de ser uma outra
história, quando afinal era a mesma…
Ainda hoje, quando entro nessa
sala, o meu olhar se vira para a estante, onde estão os livros que contêm as
minhas sílabas. Ainda lá estão, elas. Bem guardadas.
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