terça-feira, abril 17, 2012

Dizei-me!


Dizei-me!
O que podemos fazer para deter esta insanidade que tomou de assalto Portugal há anos antes que nos destrua por completo?
Disseram-nos que é pelo voto que mandamos e mudamos.
Votei. Votámos. 
Não ouço lá a minha voz nem a de muitos.
Disseram-nos que temos liberdade de nos manifestar.
Estive em várias manifestações. Estivemos.
Não ligam, por maiores que sejam.
Disseram-nos que temos liberdade de expressão.
Usamo-la todos os dias e alguns (poucos) jornalistas e pensadores denunciam e alertam.
Não ouvem.
As liberdades são todas ilusórias. Têm-nas uns poucos. Há liberdade apenas para roubar, trair e mentir.
Então, o que é que neste sistema político nos permite sermos ouvidos?
Dizei-me!
O sistema é um mero jogo insidiosamente viciado, espartilhado, que invoca o perigo de envenenamento para que ninguém fora dos partidos possa alguma vez interferir na panela.
O que existe? 
Dizei-me!
Uma ILC? Que lei se proporia na ILC, uma armadilha que, a final, vai ser sujeita à aprovação dos mesmos?   Só com 10 milhões de assinaturas se poderia pensar que ela fosse tida em conta... 
Como foi possível não darmos por isso e não resistirmos perante este divórcio litigioso entre povo e país? Um divórcio agravado, pois bem vemos que o povo vive num planeta e o poder noutro.
Que faço? Que fazemos? Não quero mais sentir-me impotente. Não quero fingir que nada se passa. Não basta a revolta que nos revolve as entranhas. 
Dizei-me!
Não posso ficar de braços cruzados assistindo à morte do meu País. Salvem-no!
Como?
Alguém que me (nos) ajude, depressa. Tenho medo de desistir.
Dizei-me!

domingo, abril 15, 2012

Sílabas


Num tom que não admitia contestação, declarei do alto dos meus três anos que queria ler. Não me lembro da resposta mas deve ter soado a hesitação porque não mais larguei o assunto até forçar uma rendição total.
Comecei então a ver a mãe a recortar fotografias de revistas e a guardá-las. Intrigou-me, aquele mistério. Parecia uma brincadeira que me estava vedada, e olhava entre o curiosa e o zangada aqueles recortes coloridos. Até que um dia percebi: do desvelo de mãe saiu um dossier pequeno, com algumas folhas brancas. Nestas, cuidadosamente seleccionados estavam colados os tais recortes de revistas e, à frente de cada boneco, uma letra.
Finalmente ia ler! Sofregamente absorvi as letras e depois as sílabas, obrigando a desesperada mãe a pensar em palavras que pudesse construir com o já aprendido e voltar às revistas para encontrar os bonecos adequados. Ainda me lembro da folha que tinha um cavalo. Já na altura era uma paixão, e o conseguir ler o nome da coisa amada comoveu-me. Tinha conseguido! O dossier foi aproveitado para o irmão seguinte, mas o interesse não era o mesmo, e quando chegava ao cavalo, olhava para a mãe com ar triunfante e dizia sempre: Égua! Acho que ficou por ali.
Em casa da avó, na Rua de S. Ciro ou no Alentejo, a mãe conseguia descansar um pouco da minha impaciência e dava lugar à avó. Sentadas à camilha, eu numa cadeira com várias almofadas que me faziam ter os pés ainda mais longe do chão, começava a lição. A avó pegava num livro qualquer e com o seu vagaroso dedo indicador ia apontando as palavras que eu tinha de ler e das quais não tinha a mínima ideia o que significavam. Eram sílabas. Lindas. Uma vitória saborosa. De vez em quando, aquele carinhoso dedo enrugado tapava as minhas sílabas e eu, chorosa, chamava a mãe em meu auxílio: Ó mãe, a avó não me deixa ler!
Pouco a pouco deixaram-me à solta, e aos cinco, lia os livros da Enid Blyton, “Os Cinco”, não percebendo metade e perguntava sempre à mãe o que era “um fim emocionante”.
Em casa da mãe havia tudo. Pude ir devorando sílabas. Portuguesas primeiro, mais tarde as francesas e inglesas. Passaram também a ser minhas, estas.
Num dos escritórios no Alentejo estavam os livros mais infantis, os da Condessa de Ségur, com gravuras e ortographia da época. Minha querida Sophia, como sofri com os teus desastres!
Na sala havia uma pequena estante com livros fascinantes que me acompanharam vida fora. Na prateleira de baixo estavam os livros de estudo da minha avó e tias-avós, e os que serviram também a mãe e tios. Passei férias inteiras a aprender francês, inglês, história e geografia em livros do séc. XIX ou princípios do séc. XX, cujos exercícios passava para um caderno comprado na vila.
Já mais velha lia os da prateleira de cima, romances cor-de-rosa, como “John chauffeur russo” ou “Água pela barba”. As histórias das meninas pobres e príncipes ou vice-versa, repetidas à exaustão com diferenças que nos davam a ilusão de ser uma outra história, quando afinal era a mesma…
Ainda hoje, quando entro nessa sala, o meu olhar se vira para a estante, onde estão os livros que contêm as minhas sílabas. Ainda lá estão, elas. Bem guardadas.