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Porque, sem dramatismos menores, a verdade é que a barbárie se instala e não vem dos tais invasores selvagens e cruéis. Vem do ritmo que imprimiram à nossa civilização, naquilo que introduziu na nossa vida quotidiana a racionalidade de um progresso e duma técnica que deixámos avançar incontrolados sem respeito pelas várias ecologias - as da terra e as da alma -, a destruir um tecido social cerzido por séculos e séculos de experiência do homem no seu diálogo com a natureza. Porque a verdade é que somos memória, que é como quem diz, tempo e história, e tudo isso é fruto de um corpo a corpo secular entre aquilo que temos por dentro e o mundo que encontrámos para exercitar a vida.
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Uma das saídas da massificação seria talvez a da cultura, que não é, obviamente, a cultura de massa. É a cultura no seu modelo clássico: uma mistura da educação, do saber e da sensibilidade, uma necessidade de conviver com o estético, acompanhado do conhecimento dos porquês do mundo e do sentido da vida, que é, em rigor, a missão da criação artística. Mas não creio que, para tudo isto, baste a vontade de cada um e a determinação dos políticos. Tudo terá que nascer da necessidade de responder à incomodidade colectiva e cujas respostas se exprimem já através duma sintomatologia diversificada e que tem que ver com o desejo de preservação da História através do património, da guarda da paisagem, dos costumes, da gastronomia, do folclore, da procura dos espaços, a recusa da uniformidade, da aproximação da natureza, enfim, de um conjunto de coisas que correspondem a nostalgias profundas, que o consumismo atento procura recuperar a seu favor.
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Não posso garantir que a redescoberta e a revalorização da terra, o respeito pela sua identidade, a sua diversidade e a sua história, sejam a panaceia que vai libertar o homem deste mundo cinzento em que vivemos, mas estou convencido de que, sem isso, será muito difícil readquirir uma postura que nos ponha em harmonia com aquilo que exige o mais profundo da nossa vocação individual, cultural, espiritual e cósmica.
Reconhecermo-nos na história e na geografia da nossa terra, exigirmos o respeito pelas matrizes em que nascemos e vivemos, é um programa indispensável à nossa sobrevivência de seres libertos das modernas opressões e será, possivelmente, a única ponte de passagem para o futuro."
António Alçada Baptista in A Pesca à Linha - Algumas Memórias, Editorial Presença
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