segunda-feira, agosto 26, 2013

A Morte de um Homem por António Alçada Baptista


Venho do cemitério de Degracia onde ficou Hipólito Raposo. Apossado da evocação forte da sua figura forte regresso a Lisboa com pancadas de sabor “shakesperiano” na mente:
          Este era um Homem. Outros serão mais agradáveis ou mais astuciosos e por isso agradarão ao mundo. Mas este era um Homem…

E não é só a tristeza sentimental da muita amizade que tenho por um dos seus filhos. É sobretudo a cortante angústia da minha condição de homem, de homem do século XX, que uma a uma vê cair lições de honrosa verticalidade.
Muitos se impressionarão com o cessar da sua doutrinação. Outros lamentarão a paragem da sua pena, da sua escrita de mármore. Alguns condescenderão em chamar-lhe inteligente. Haverá aqueles que se entreolharão com alívio limpando nos olhos filisteus lágrimas de saudade falsa.
Tudo isso me parece pouco perante o que significa o ter passado mais um dos poucos Homens que restavam.
Põe-me o meu cepticismo político em extraordinário à vontade para falar deixando de parte uma paixão que não conheço.
O azul e o branco, o verde e o vermelho passam-me despercebidos perante qualquer que mostre a marca da nossa condição de filhos de Deus. E mais que as lições das fórmulas, dos principiozinhos ou dos sistemas, precisa a nossa geração das lições da Honra.
Queixam-se os povos da míngua dos “stocks”. Querem matérias-primas e chamam pelos cambiais. E amealham o ouro e os tesouros.
Não reparam como estão vazias a reservas da honra. E é aqui que eu agradeço a Hipólito Raposo a grande lição que nos deu.
Acabaram-se os signos do zodíaco. O 1º de Janeiro e por aí adiante, todos os dias tão iguais até ao 31 de Dezembro. Todos sob o signo das coisas, das fórmulas e das consciências fáceis. Signo do dinheiro fácil, da honra que deixou a rigidez da Honra para se adaptar mole e flácida às exigências da comida ou da ambição.
Há uma geração que veio ao mundo nesse signo – e essa é a minha…
Caímos rodeados de uma ideia de se ser alguém que outros atrás não conheciam. E assistimos à escalada avassaladora dos que se impõem e que se apontam ao mundo em exemplos de “novas” virtudes cívicas.
E a todos nós percorre a tentação…
E a consciência quer actualizar-se…
É quando a figura de Hipólito Raposo surge e nos segura.
É quando aparece o Homem para quem o dever era estrada dura de sacrifício. Conheceu o mundo e nele viveu e nunca se tentou…
Coberto pela bandeira do Integralismo Lusitano, a mesma que cobria António Sardinha, Hipólito Raposo seguiu da capela da sua quinta.
A rodeá-lo os seu amigos fiéis: Monsaraz, Pequito Rebelo, Luís Almeida Braga, Semião Pinto de Mesquita, Luís Cabral de Moncada, D. José Ferrão.
Depois Fernando Amado, a representar os poucos de uma geração que se perdeu.
A seguir meia dúzia de novos que quiseram receber mais uma lição.
Finalmente o povo, mulheres do campo, homens do campo, em alas abertas, com velas acesas e máscaras de tragédia…
Hipólito Raposo ficou no cemitério de Degracia, no cimo do outeiro, rodeado de eucaliptos e pinheirais.
Ao viandante deve dizer-se: Ele está ali.
E este era um Homem. Outros foram mais agradáveis ou mais astuciosos e por isso agradaram ao mundo. Mas este era um Homem.

Lisboa, 28-08-53

ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA in revista Cidade Nova

Nota: O avô José Hipólito Raposo morreu a 26/08/53, passando hoje 60 anos sobre a sua morte. No mesmo dia, em 1974, morria o seu filho mais velho, João. 

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