domingo, dezembro 02, 2012

A carta

“…És as minhas asas. Vens voar?”
Pousou a caneta de tinta permanente que o acompanhava sempre, presente do seu querido avô pelo exame da quarta classe, e suspirou.
Levara uma noite sem horas, mil noites sem horas, mas finalmente chegara ao fim. Aquilo era A carta. Decidiu-se a reler e, aliviado, dobrou o papel, meteu-o no sobrescrito sóbrio, e fechou-o.
E agora? Comprava flores para acompanhar a sua alma? Quando finalmente tinha decidido imprimir em papel o que há anos estava impresso na sua pele, no seu corpo, na sua mente, não se conseguia decidir. Nunca tinha pensado que haveria outras coisas para decidir. O importante era a carta. Sempre fora.
A princípio achara ridículo escrever uma carta. Aliás nem pensara em escrever nada. Nem pensara. Os sentimentos tinham-se instalado sem licença, comodamente e sem barulho. Umas pequenas ânsias de vez em quando e era tudo. Quando dera por ele, já não conseguia desalojar o que sentia.
Depois, quis descartar. Era coisa impossível, ela rir-se-ia, não tinha futuro... Tinha de esquecer. Mas à parte as temporadas em que se embrenhava totalmente nos seus hobbies, não conseguia.
Qualquer coisa lhe prendia a voz e não conseguia dizer-lhe nada que não fosse trivial. Tentava uma aproximação mas desistia.
Foi então que decidiu escrever-lhe. À antiga. Uma declaração de amor, pronto. Mas as palavras não se alinhavam como queria, pareciam-lhe ora ocas ora demasiado fugidias, e por isso ia adiando o sentar-se à secretária.
Quando finalmente se sentou à frente do papel de carta, olhava e não escrevia. Como se escrever fosse matar o que sentia. Habituou-se àquelas horas sentado a olhar para um papel em branco.
Quando se resolveu a pegar na caneta, as palavras eram tão tontas que as rasurava com todas as forças. Cheio o papel de palavras tontas, acabava por desistir e transformava-as em bolas que rodeavam o cesto dos papéis. Basquetebol nunca fora o seu forte.
Recomeçava sempre. Já que começara…
Havia dias em que olhava pela janela, via a mudança das estações nas poucas árvores que tinha direito a ver, e duvidava… Largava a caneta, raivoso e questionava o que sentia. Vale a pena?
Atacara o branco como se o quisesse matar. De amor.
Agora estava ali. Conseguira escrever o que nunca conseguira dizer e gostava do que lia.
Decidiu-se por simples margaridas porque rosas encarnadas, não.
Mandou a florista entregar na morada certa e a custo deu-lhe o sobrescrito.
No dia seguinte, ela respondeu-lhe. 
No jornal, secção da necrologia.

Leonor Raposo

2 comentários:

  1. LINDO LEONOR..
    LIÇÃO A APRENDER, NÃO SE POUPA A ALMA EM SENTIMENTOS DESTE TAMANHO.
    BEIJO ENORME QUERIDA

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