(Pedaços de qualquer coisa que ainda hei-de acabar, talvez em forma de diálogos)
Não há como andar de autocarro...
O metropolitano é da elite, o metro é chique, o autocarro é do povo.
Do meu povo, não da burguesia, complexada, complicada...
A burguesia média, baixa, alta ou a que aspira a ser burguesia, só anda de transporte público se não tem mesmo outro remédio. E quando tem de ser, é de metro.
Andar de carro dá status.
Para usufruir de uma hora de lazer no Bairro Alto, são capazes de andar às voltas outras duas, procurando desesperadamente qualquer buraco para estacionar e arriscar a que na volta as rodas estejam bloqueadas.
Acarinham-no como se fosse o animal de estimação da família, com capas cinzentas protectoras, escovam-no suavemente aos fins-de-semana, e só não o levam para a cama porque não cabe no elevador... Na minha rua estacionam-no no passeio mesmo em frente da porta, para não o perder de vista, e calculo que o vão espreitar à varanda de vez em quando, lançando olhares ternurentos e cúmplices.
O autocarro, esse, é do povo.
Do povo que refila, se queixa, se ampara, quando o condutor não espera e não lhes liga.
Do povo que ouve pacientemente do vizinho da frente queixas de operações médicas feitas e por fazer, e contrapõe com operações maiores e piores, numa eterna batalha à procura da medalha de mérito por desgraças...
Do povo que faz questão mesmo que toda a gente saiba que o seu neto Iuri (não é lindo, o nome? Fui eu que escolhi!) é a criatura mais prodigiosa à face da terra, ainda não descoberta, mas já em castings para a próxima novela.
Do adolescente com excrescências nos ouvidos, das quais nos chegam não as músicas, mas já só os ritmos, tchibum tchibum tchibumbum, tchibum tchibum tchibumbum, cópia barata dos carros ao lado, que nos presenteiam, de vidros abertos, qual discoteca privada ambulante, com a música pimba ou afro mais recente.
Da concorrência aberta e feroz entre velhotas e crianças numa ânsia de serem os primeiros a pressionar o botão para parar, ainda o autocarro não saiu da paragem anterior.
Do povo que se indigna com o que avalia como injustiças, seja do condutor, dos jovens que não dão o lugar, das mudanças e encurtamento de trajectos, da vida, em geral e em particular.
Do povo que anuncia o Outono no autocarro com o cheiro a naftalina do casaco acabado de tirar do armário.
Dos silêncios repentinamente quebrados com comentários aguerridos contra os governos, centrais e locais, bastando que alguém se lembre de começar.
Da solidariedade espontânea para com quem não sabe onde há-de sair, com indicações precisas e contraditórias de todos sobre a paragem, as ligações, o número do autocarro a apanhar, os metros a percorrer a pé até ao destino, e de como a discussão passa a conversa sobre os bons velhos tempos em que uma sardinha era dividida por sete, o bilhete custava 25 tostões, os jovens eram educados, o dinheiro era pouco mas chegava, o começar a trabalhar aos 11, as galinhas e vacas não eram hormonas...
Se um estrangeiro entra no autocarro num desses momentos há-de pensar que todos se conhecem há longa data.
É a comunidade efémera do mesmo percurso diário, que se esvai quando as portas se abrem...
10/03/06 e 12/02/11
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