sábado, agosto 27, 2011

O jardim


Quando aqui cheguei, por aqui querendo dizer ao campo, ao Alentejo, à quinta da minha avó, já vinha com o coração apertado pelo que tenho visto passar-se há longos anos no País. Queria descansar e acalmar.
Encontrei um estado da nação similar, e o coração quase parou. Nem aqui!
O que pouco interessa, como que a servir de fachada, minimamente limpo e com ar quase ordeiro, num cenário montado para português ver.
Meio escondido, mas só meio, tudo o resto. Assustador.
Ervas daninhas tomaram conta dos canteiros, dos vasos, dos caminhos, impedindo-nos de passar. Glicínias e outras trepadeiras que dão belos cachos floridos mas cujos ramos vão insidiosamente ocupando todo o espaço, pendem do alto e já rastejam pelo chão. Buxos e plantas a secar, no limite da salvação. Algumas das árvores que plantei, especialmente as nogueiras, reduziram-se a meros paus mirrados, no meio do matagal. Salvam-se umas pinheiras e uns carvalhos.
O desânimo dura pouco. Arregaço as mangas e trabalho.
Começo pelos cortes, nas trepadeiras, nas silvas, até nas roseiras que taparam a escada para a capela. Há muito para cortar, parece que não tem fim. Corto, corto, corto.
Depois vou tratar das ervas daninhas. Não quero que fique nem uma. Hei-de arrancar todas.
A seguir, rego, à tardinha…
Assim vai este jardim. Esta nação.
A outra Nação, com as suas glicínias, ervas daninhas e plantas mortas, também precisava disto.

sexta-feira, agosto 26, 2011

A Torre Desencantada - Nos 58 anos da morte de Hipólito Raposo


    No tempo em que, por decisão de um conselho de guerra em Santa Clara, fui hóspede da República na Fortaleza de S. Julião da Barra, todos os dias eu ficava na muralha, à espera de ver luzir o farol do Bugio que fielmente anunciaria a continuação da vida humana dentro daquele galeão de pedras, encalhado no areal, com o dever, cumprido a rigor, de espantar as trevas na noite do mar.
    Começou a interessar-me a sorte obscura da gente que lá vivia e de quem ninguém se lembra ao passar, corno acontece aos fogueiros dos vapores, esquecidos por aqueles que jogam e se divertem, à custa do seu suor.
    Pedi informações e contaram-me histórias incompletas de ciúmes, complicações tenebrosas, sentimentos fatais de homens e mulheres que se enredavam constantemente em suspeitas e acusações, ao contacto forçado de uns e de outras, naquele estreito cativeiro, sem, fácil ligação com a terra firme. A inacção, o descanso e a ociosidade permitiriam, porém, que se dilatasse em largo horizonte, a miragem dos mais ardentes e condenáveis desejos.
    Quando se está preso, reduzido a disponibilidade constante, torna-se a alma mais acolhedora e sensível às pequenas realidades, como aos grandes prestígios da natureza e da vida: a formiga pode engrandecer-se até às proporções do elefante, os astros, ofuscados pelas luzes da cidade, recomeçam a brilhar, com pasmo dos olhos, os factos menos expressivos tornam-se acontecimentos de vulto, examinados ao prisma deformador das nossas aspirações, na limitação forçosa em que se nos contêm a vista, os passos e o poder de acção.
    Na lembrança desperta, dá-se duração e vida ao que é efémero, as impressões sofridas prolongam-se às vezes em tormento voluptuoso, até às zonas do patético.
    Bem dizia Crisfal na célebre carta sua, de antecipado (ou eterno) romantismo:
                                      Os presos contam os dias
                                      mil anos por cada dia...
    A clausura é assim uma condição de análise introspectiva, mas que pode divagar e ampliar-se no silêncio das paredes nuas, ou expandir-se pelo rumor férvido das águas, para cujas queixas sem termo, acabamos nós por ser surdos, felizmente.
    O tumulto em que se nos revelava a vida em liberdade, representa-se ali como ordenação, plano seguro em que já seria grato viver, para viver melhor.
    A vizinhança da Torre de S. Lourenço do Bugio, irmã da de S. Julião para cruzar os fogos de defesa da barra, nos tempos em que era possível defendê-la, estimulava o meu desejo de a escalar, de penetrar o seu segredo, conhecendo a sua gente e sentindo o drama das almas daquelas famílias, adstritas à função invariável, quase-mecânica, de fazer rodar em relâmpagos e eclipses regulares, a luz do farol.
    Senão fosse o Bugio, àquela hora cinzenta do crepúsculo, não sei que pudesse eu fazer do corpo e da alma, no ermo de silêncio e sombra que me cercava e inundava todo o es- paço. E se, por caso fortuito, o lanternim não se acendesse urna noite, teria chegado o momento da consumação dos séculos: pelo menos, a surpresa seria tanta como avistar do Equador uma aurora boreal ou ver chover coriscos do céu sereno.

Setembro de 1929
(In Hipólito RaposoPátria Morena, Porto, Livraria Civilização, 1937)

quinta-feira, agosto 11, 2011

Sem bolsos


Hoje abri a caixa de costura.
E com linha preta, dupla, enfiada em agulha grossa,
pespontei e silenciei todos os meus bolsos.
Um a um.

Porque um a um foram rasgados, pilhados e despejados,
sem contemplações nem misericórdia.
Vazios de sentido, mesmo quando o perto do nada é o quase infinito.

Sobram uns tímidos sonhos, talvez,
mas esses não vivem nem cabem nos meus bolsos.
Mergulham, ofuscando, nos meus olhos.


Leonor Raposo
10/08/11

quinta-feira, agosto 04, 2011

A cesta


Ontem olhei para dentro da cesta e vi-a quase vazia. Um livro, o que leio nos transportes e antes do almoço, um remédio e um papel.
Porque é que saio com ela porta fora todos os dias? Posso perfeitamente pôr tudo aquilo na carteira e dispensar a cesta…
No autocarro ocupa um espaço maior que o seu tamanho indicia, tenho sempre de ter cuidado para não magoar alguém, se me sento não cabe bem no chão a meus pés e acabo com ela no colo, enquanto manobro os braços para ler. As senhoras tanto lançam um olhar de desdém como de curiosidade. Os homens nem ligam.
Resumindo, um verdadeiro empecilho.
Mas um empecilho de que não me consigo livrar. O meu gesto já se tornou automático. Agarrar nas suas pegas e sentir o seu peso ao caminhar, é tão natural, que me iria sentir nua sem ela.




Se a cesta começou por ir às reuniões Europa fora, acabou por ir nas miniférias a Istambul, e acompanha-me todos os dias no trabalho.




Tem uma paciência de santa, ouve-me a berrar com o computador, a falar sozinha, e nunca interrompe.
À saída, se vamos às compras, condescende em ficar atulhada e contribuir para a preservação do planeta.
Já vai também a restaurantes, aos jantares de amigos e à saída de sexta-feira.
O conteúdo é variável e deve ser por isso que nunca se cansa. Há dias em que só carrega o livro e o remédio, noutros tem a felicidade de reencontrar as compras, noutros ainda, transporta delicadamente o portátil, e, mais vezes do que gostaria leva com menosprezo a papelada de reuniões ou trabalho.
Tal como os donos se começam a parecer com os seus cães, também eu estou a ficar irmã gémea da cesta. Rectangular e tudo. Com desenhos por fora.
Agora, meus amigos, eu e a cesta, a cesta e eu, somos tão inseparáveis como os Cinco da Enid Blyton. Talvez mais ainda, mesmo sem as aventuras.
Acho que vou propor a legalização deste casamento.

04/08/10
Leonor Raposo

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