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Beja sabe muito bem cantar e ninguém lhe ensinou. Em famosos acentos de
exaltação, tristeza, saudade e amor, por estas noites de folguedo andam a
cantar rapazes e cachopas ao ar livre, senhoras e criadas dentro de casa, trauteiam
os garotos de recados e os engraxadores, entoam melancólicas lembranças os
velhos, e pela sua débil voz, já riem e também sonham as crianças pobres da
rua.
Na cidade de Beja, metrópole de zagais, não se assobia, canta-se
colectivamente. Quando os coros a outros coros respondem, por este nocturno
antifonário, parece que tomam voz as pedras e as árvores, os telhados e as
muralhas, as praças e as vielas. Por voltas de acaso ou por impulsos de
competição, todo o aglomerado urbano reboa de dominadoras polifonias que vão
ouvindo e meditando os transeuntes silenciosos, enquanto do pálio dos altos
céus choram luz as estrelas, talvez por não saberem cantar…
Por estas noites de tradicional expansão, em que na fé do povo
esquecidas vão as virtudes dos Santos do calendário, das fogueiras se levanta
em perfumes de hortelã, funcho e mentrasto, a mais funda e saudável respiração
da terra. Sucedem-se em desfile regular os grupos corais para demonstração e
provas de um exame em que se pode ganhar o prémio e o louvor dos entendidos, já
pela cidade todos dispersos, ocultos, a escutar…
Cinco, seis formações de vinte cantores, vão surgindo de uma esquina
por sua ordem, detêm-se nas praças, enchem de ecos as ruas caladas e absortas.
Depois, andam, desandam vagueiam pela noitada até aos alvores do sol-nado,
levando após eles devotos, curiosos ou admiradores.
Ao mesmo tempo, o povo cuidadosamente os ouve e julga, alinhado em
renques de multidão respeitosa, auditório de mulheredo e de morenos rurais,
aqui uns de manta e vara, acolá outros de pelico e safões bem lanudos e
encorreados.
E a segui-los, sèriamente, embevecidamente, todos os olhos de essa
gente do Sul, extáticos e saudosos da distância, pasmados na avidez dos longes,
olhos firmes e dilatados, como luzeiros de alma, à espera desde o primeiro
princípio, sempre à espera da hora de vencer os ilimitados limites do Além…
Nas vozes destes músicos iletrados que de dia são pastores, ganhões,
homens de ofício e caixeiros, ouvem-se redondilhas de poetas de talento e sem
nome, loas votivas ou hinos à sua amada terra em que sempre vibra o velho
orgulho alentejano:
De Pax Julia fui Beja,
Minha nobreza é antiga,
E às outras causa inveja
O bem que de mim se diga…
Em estrofes bem rimadas, desafogam-se mágoas, exaltam-se sentimentos
colectivos ou gemem-se queixas de amor, que a música às vezes desmente, sem
qualquer cerimónia nem reparo dos ouvintes…
Os cantadores vão-nos levando com eles para altitudes de entusiasmo ou
para zonas de pura comoção humana.
…corais espontâneos, geralmente constituídos por homens, alguns outros
mistos, neles entrando quatro ou cinco raparigas, com vozes de maviosa clareza
e suavidade.
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Ninguém sabe como nasceram, onde se inspiraram, que escola tiveram
estes aedo-campaniços que um rapsodo guia, dando o ponto, a dialogar com o coro
ou a fundir-se nele em harmoniosa orquestração.
Em filas ordenadas se deslocam, enlaçados pelos braços uns dos outros,
para constituir solidário volume de órgão vivo, movendo-se com lentidão mais
que alentejana, de olhos fechados os de maior transporte, para deixarem subir
as almas harmonizadas até aos balcões dos castelos das nuvens e das estrelas.
…
Solene, respeitoso, ritual, é o andamento na rua, em que as filas de
balançam de lado a lado, com o mais vagaroso compasso.
Os pés deslocam-se a oscilar em esboços coreográficos, como se por
obediência a remota inspiração, uma dança litúrgica se fosse ali executando
para subir em pomposa solenidade, a grande nave de uma catedral.
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A qualquer conclusão a que chegue o investigador pelo caminho da
verdade, por análises e confrontos essenciais, não comecem a dar mestres de Música
aos cantores rurais de Beja nem os queiram eles aceitar, a título de
aperfeiçoamento, para não vir a perverter-se a espontaneidade, a sinceridade
das suas modas, o religioso e agreste encanto do seu Canto.
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